Juiz Federal da 3a Turma Recursal do Paraná. Doutor em Direito da Seguridade Social (USP). Coordenador da Pós-Graduação em Direito Previdenciário e Processual Previdenciário da ESMAFE-PR. Presidente de Honra do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário - IBDP. Professor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da UNIVALI.

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Aposentadoria especial: retroação dos critérios normativos mais protetivos - a questão dos ruídos



"É certo que a 1ª Seção do STJ analisou a matéria discutida na espécie em sede de incidente de uniformização, com o que se opera uma forte persuasão à vinculação das demais decisões no âmbito dos Juizados Especiais Federais. Contudo, isso não impede que o órgão jurisdicional chamado a solucionar a lide enfrente a mesma questão sob perspectiva constitucional, linha hermenêutica esta que não desafia o entendimento daquele Colendo Tribunal Superior e que tampouco à sua revisão se submete". Desde uma perspectiva constitucional, a existência de critérios científicos mais protetivos e mais recentes a disciplinar os limites humanos de tolerância no ambiente de trabalho, prestam-se, pela lógica, a reconhecer que as mesmas condições insalubres,  verificadas no passado, devem levar ao reconhecimento da atividade especial. Uma questão de isonomia e de proteção dos direitos fundamentais à saúde, ao meio ambiente do trabalho ecologicamente equilibrado e à aposentadoria com critérios diferenciados (3 Turma Recursal do Paraná, Recurso Cível 5002232-78.2011.404.7011/PR, j. 09/12/2013)


RECURSO CÍVEL Nº 5002232-78.2011.404.7011/PR












VOTO-VISTA























A eminente relatora entendeu, em seu substancioso voto, ser indevido o reconhecimento do período de 06/03/1997 e 31/05/1998 como especial, quando o segurado estava sujeito a ruído de 85,9 decibéis, ao argumento de ser inferior ao limite legal de 90 decibéis, vigente à época da prestação do serviço.

A essa conclusão chegou a ilustre relatora porque orientou seu entendimento no sentido de que, "na vigência do Decreto n. 2.172, de 5 de março de 1997, o nível de ruído a caracterizar o direito à contagem do tempo de trabalho como especial deve ser superior a 90 decibéis, só sendo admitida a redução para 85 decibéis após a entrada em vigor do Decreto n. 4.882, de 18 de novembro de 2003" (STJ, Pet 9059/RS, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 28/08/2013, DJe 09/09/2013).

É certo que a 1ª Seção do STJ analisou a matéria discutida na espécie em sede de incidente de uniformização, com o que se opera uma forte persuasão à vinculação das demais decisões no âmbito dos Juizados Especiais Federais.

Contudo, isso não impede que o órgão jurisdicional chamado a solucionar a lide enfrente a mesma questão sob perspectiva constitucional, linha hermenêutica esta que não desafia o entendimento daquele Colendo Tribunal Superior e que tampouco à sua revisão se submete.

O problema concreto se relaciona ao nível de ruído que deve ser exigido para atividades exercidas após a edição do Decreto 2.172/97. Isso porque foi estabelecido por esse Decreto que a exposição deveria situar-se acima de 90 dB. No entanto, por meio do Decreto 4.882/2003, foi disposto que as atividades com exposição a ruídos superiores a 85dB já mereciam reconhecimento de sua natureza especial.

Esse conflito de leis no tempo deveria resolver-se pela simples aplicação do princípio tempus regit actum, segundo o qual a qualificação da atividade (se especial ou não) deve reger-se pela legislação vigente ao tempo de sua prestação? Ou seria possível a retroação da lei que, presumivelmente amparada em dados científicos mais recentes, estabelece critérios que conferem maior proteção à saúde do trabalhador?

A jurisprudência do STJ, como visto, responde que deve ser aplicado o princípio tempus regit actum.

Com todas as vênias, esse entendimento jurispudencial segue o que pode ser considerado uma aplicação às escuras do princípio tempus regit actum. Ora, se novos critérios reconhecem a ofensa à saúde do trabalhador a partir de determinado nível de exposição a ruído, são esses critérios últimos, pretensamente mais precisos em termos científicos, que merecem prevalecer, por uma singela questão de lógica. Essa aplicação às escuras do princípio tempus regit actum pode, ao extremo, gerar situação em que o trabalhador não tem reconhecida sua atividade como especial e, nada obstante, pode sofrer os danos em sua saúde pelo exercício de atividade insalubre.

Mas a aplicação do direito fundamental social deve vincular-se à sua proteção suficiente.

A interpretação conferida ao problema à luz da norma constitucional contida no art. 201, §1º, da Constituição, exige o reconhecimento da natureza especial da atividade mesmo quando apenas posteriormente a ofensa à saúde ou à integridade física do trabalhador é reconhecida pelo regulamento.

Não importa, neste sentido, quando foi reconhecido que determinado nível de ruídos já se revela maléfico à saúde, mas o fato de o segurado inegavelmente haver trabalhado em condições adversas e, portanto, fazer emergir situação que reclama a aplicação de critérios diferenciados.

Nos casos de superveniência de critério normativo mais protetivo da saúde do trabalhador, apenas sua aplicação retroativa atende às exigências do princípio da igualdade e faz respeitar a norma constitucional que assegura a aposentadoria antecipada pelo exercício de atividades ofensivas à saúde ou à integridade física.

O princípio tempus regit actum não é uma norma absoluta. Sabe-se que aos princípios não se aplica a regra do tudo ou nada, tal como alertava Dworkin ainda na década de 1990, mediante lições que seriam reafirmadas, ainda que a partir de outra perspectiva, pela teoria os direitos fundamentais de Alexy.

Em regra, a legislação que caracteriza determinada atividade como especial é aquela vigente ao tempo da prestação do serviço. Em regra, mas não sempre e em todo caso.

Deve ser aplicada retroativamente a legislação posterior que, adotando critérios científicos mais recentes, identifica determinada atividade como especial, pois, se for reconhecido que determinada atividade era insalubre a partir de critérios científicos mais recentes, e não houver a compensação com a garantia de saída/aposentadoria antecipada, viola-se também o direito fundamental à saúde, enquanto "direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação" (CF/88, art. 196).

A mesma interpretação é a única a assegurar, igualmente, a efetividade do direito ao meio ambiente de trabalho ecologicamente equilibrado, pois ao Poder Público corresponde o dever constitucional de "controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente" (CF/88, art. 225, inciso V).

Se está em jogo o bem-estar humano; se a contingência social (que pode acometer a qualquer pessoa pelo só fato de viver em sociedade) transforma-se em fator com potencialidade para colocar uma generalidade de pessoas em uma situação de desvantagem - e até mesmo de lhes suprimir as condições de obter recursos a partir de seus esforços pessoais -, a imediata compensação social se justifica em nome da igualdade e com vistas à promoção da autonomia pessoal, elementos constitutivos da dignidade humana. Se o direito fundamental à proteção da saúde no trabalho e à correspondente saída antecipada encontra-se esvaziado se uma dada interpretação culmina por oferecer proteção deficiente a este direito fundamental, o princípio da universalidade da proteção humana contra riscos sociais encontra-se vulnerado, assim como o direito fundamental à saúde, ao meio ambiente de trabalho equilibrado e o direito constitucionalmente assegurado de aposentadoria a partir de critérios diferenciados.

Corolário da eficácia normativa desses princípios constitucionais, o Poder Judiciário deve operar interpretação deve fazer cessar a proteção deficiente do direito fundamental à proteção social, em seu sentido amplo. Com efeito, com fundamento no princípio da proibição de proteção deficiente, deve-se rejeitar a intepretação que , em determinadas circunstâncias, afigura-se desproporcional e culmina por comprometer a própria finalidade do sistema protetivo, qual seja, a de oferecer proteção à vida humana que se encontra em uma contingência social adversa.

De outra perspectiva, mas ainda no mesmo sentido, é preciso dar aplicação ao princípio da prevalência dos direitos humanos, inscrito no art. 4º, inciso II, da CF/88. Este princípio, no que toca à atividade de aplicação do direito, leva-nos à interpretação pro homine das normas jurídicas. É justamente esse princípio que norteia, em relação aos direitos de defesa, como o direito do contribuinte ou o direito do acusado em processo penal, o sistema normativo a reconhecer expressamente a retroatividade da norma jurídica sancionatória mais benéfica.
Em relação ao tema objeto de discussão inexiste regra jurídica expressa, mas a eficácia normativa do princípio constitucional pro homine assegura a retroatividade da norma mais protetiva da saúde, do meio ambiente do trabalho e do direito à saída antecipada do trabalho exercido em condições insalubres.

Afinal, as implicações desse princípio são fundamentalmente, que o intérprete, "no momento de aplicar ou interpretar-se um preceito, deve formular de maneira mais favorável ao indivíduo/homem, isto é, acolhendo a interpretação mais extensiva quando se trate de normas que consagram direitos e prerrogativas, e a interpretação mais restritiva quando se trate de disposições cujo propósito é restringir ou coartar o exercício de tais direitos" (GUERRA, Luiz Alberto Petit. Estudios sobre el Debido Proceso: Uma visión global: Argumentaciones como derecho fundamental y humano, Caracas, Ediciones Paredes, 2011. p. 256, referindo-se à pauta sugerida por Monica Pinto).

Diante do exposto, penso que, desde uma perspectiva constitucional, a existência de critérios científicos mais protetivos e mais recentes a disciplinar os limites humanos de tolerância no ambiente de trabalho, prestam-se, pela lógica, a reconhecer que as mesmas condições insalubres, verificadas no passado, devem levar ao reconhecimento da atividade especial. Uma questão de isonomia e de proteção dos direitos fundamentais à saúde, ao meio ambiente do trabalho ecologicamente equilibrado e à aposentadoria com critérios diferenciados.

Ante o exposto, voto por negar provimento ao recurso do INSS, condenando-o em 10% sobre o valor da condenação, observada a súmula 111 do STJ.


Curitiba, 09 de dezembro de 2013.














(Digital) José Antonio Savaris
Juiz Federal Relator p/ Acórdão

3 comentários:

  1. Justo! Não temos que nos conformar com as decisões políticas dos superiores.

    ResponderExcluir
  2. Publicação excelente Dr.! Aliás, como sempre.

    Outro ponto muitíssimo importante, que passa totalmente desapercebido por muitos advogados e julgadores, é que para cada nível de ruído existe um limite de tolerância estabelecido na NR-15 do MTE.

    O art. 239, inciso IV da IN 45 INSS/PRESS, de 06/08/2010, recomenda, a partir de 19/11/2003, data de publicação do Decreto nº 4.882, que deverá ser efetuado o enquadramento quando o Nível de Exposição Normalizado (NEN) for superior a 85db (A) ou for ultrapassada a dose unitária, aplicando: a) Os limites de tolerância definidos pelo Anexo 1 da NR-15 do MTE; e b) As metodologias e os procedimentos definidos das NHO-01.

    Muito recentemente, trabalhei numa causa em que não foi reconhecido o tempo especial laborado pelo segurado no período de 12/08/1998 a 17/11/2003. Segundo o entendimento do juízo, a exigência para o período de 05/03/1997 (Dec. 2.172/97) até 17/11/2003 era de exposição acima de 90 dB (A).

    O segurado trabalhava como torneiro mecânico, ficando exposto por 8 horas diárias a um ruído de 88 dB(A), quando o limite de tempo fixado pela NR-15 para o mesmo nível de pressão sonora, é de 5 horas diárias.

    Defendo que as Normas Regulamentadoras existem desde 08/06/1978, quando aprovada a Portaria n° 3.214/78, tendo-se como autoaplicável a autorização constante na Lei nº 9.732/98, mormente por tratar de norma definidora de direitos e garantias fundamentais, cuja aplicação, a teor do §1º do art. 5º da CRFB/88, é imediata.

    Seria inaceitável acreditar que, se ultrapassado o limite de exposição diária para um certo nível de pressão sonora, não haveria qualquer tipo de dano a saúde do trabalhador.

    Assim, entendo que não basta apenas verificar o nível de ruído a que o segurado estava exposto, mas, sobretudo, o tempo dessa exposição.

    Abs,
    Gisele Jucá.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Muito obrigado pela participação, Gisele. Adoto igual pensamento quanto ao tempo da exposição e à aplicabilidade da NR-15. Abraços e novamente obrigado, Savaris

      Excluir